quarta-feira, 31 de março de 2010


O Rei
Ricardo Gondim

Depois de sofrer meticulosa tortura, pendurado numa cruz, ele agonizava. Nos estertores, a morte se prenunciava eminente. A cena era grotesta, horrorosa, nauseante. Espasmos balançavam seu corpo; o sangue jorrava das incontáveis feridas abertas por chicotes, tapas, chutes e cordas amarradas aos pulsos. Os olhos embaçados mal se mexiam nas órbitas semi cerradas por hematomas.

O mal cheiro do lixo que ardia no monturo se misturava com o suor da multidão enfurecida. Os gritos não paravam; não se entendia o que a turba dizia. Choro, raiva, consternação, típicos do frenesi de massas irracionais, davam a sensação de que aquele momento se tornaria o mais exuberante e trágico exemplo da bestialidade humana.

Dois bandidos o ladeavam. Em julgamento sumário, a sentença capital fora confirmada de acordo com os ritos da época. Soube-se que um dos apenados era Dimas, assassino confesso flagrado em ato terrorista. Na noite que antecedeu a execução, Dimas não conseguira dormir. Como um animal selvagem, andou ao redor da estreita jaula. Dimas foi e veio mais de uma centena de vezes à espera do sol que testemunharia sua morte.


Era escuro quando ele escutou soldados zombando. A tropa repetia em cada soco alguma provocação. “Realize um milagre e prove que é o Messias”; “Você disse que os anjos estariam ao seu dispor, pois vamos ver se as hostes celestiais são mais poderosas do que a cavalaria romana”. Pontapés ensurdecedores, ecoavam pelos corredores da prisão. A noite foi insone.

Cedo, bebeu dois dedos d’água e Dimas foi arrastado pelos corredores mal iluminados da masmorra. Com violência, chegou à calçada onde outros dois sentenciados o esperavam. Dimas identificou o menos musculoso como o castigado da véspera.


A procissão começou. Trôpegos, os três caminharam por vielas mais tarde conhecidas como Via Dolorosa. Agora, súbitos companheiros de infortúnio, eles mal conseguiam carregar a trave que os mataria. Duzentos metros antes de sairem pelos portões da cidade, Dimas perguntou o nome do mais castigado.” Jesus”, respondeu. Faltava fôlego; a fatiga não lhe deixou continuar. Mas, tomando ar, emendou: “Sou Jesus, de Nazaré”.

Dali em diante, devido aos pedregulhos da estrada, Jesus não conseguia levantar-se. Os soldados se revezaram nos açoites para que ele se erguesse de um salto e prosseguisse. Queriam encurtar a liturgia que os romanos usavam para intimidar o mundo antigo : crucificar.


Dimas notou quando os soldados constrangeram um peregrino para que carregasse o fardo do Nazareno, que depois passou a seguir, cabisbaixo, a marcha soturna.

As estacas cairam nos buracos recém cavados. Os corpos pesaram e as mãos esgarçaram. Não sobrava esperança para os três condenados. Dimas conseguiu fazer um último pedido: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino”.

Hoje, passados tantos séculos continuo a perguntar: “O que Dimas viu em Jesus para acreditar que ele era rei? Como conseguiu classificar um trapo humano de monarca? Os imperadores tem autoridade, mas o Nazareno estava reduzido a pó. Se fosse rei não seria refém de uma soldadesca tão ordinária. Dimas delirava ao chamar de rei um homem morimbundo?".

Não, Dimas percebeu que Jesus era rei de outra espécie. Sem a ostentação comum aos soberanos, ele impressionava pela grandeza de não querer apelar para qualquer intervenção sobrenatural que vingasse a mensagem que ensinara. A elegância de não revidar, a grandeza de perdoar e a consciência de que era amado apesar das circunstâncias, faziam dele um monarca digno de ser seguido. Jesus haveria de inaugurar um reino diferente de todos os que já existiram. Ele seria rei das crianças, dos mansos, dos que choram, dos puros de coração, dos misericordiosos.

Dimas quis participar de seus domínios onde paz e justiça se beijariam, as cãs do ancião seriam respeitadas, os excluídos, acolhidos, e os fracassados, incentivados a continuar.

Soli Deo Gloria

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